Vozes do Engenho
O cultivo da cana e a fabricação do açúcar foram introduzidos no Brasil no início do século XVI pelos portugueses. Por se constituir no mais importante empreendimento agrícola e comercial dos séculos XVI e XVII, a cana-de-açúcar modificou a relevância do território brasileiro para seus colonizadores. Experiências isoladas já ocorriam no Nordeste, mas foi com a implantação da Capitania de São Vicente, por seu donatário Martim Afonso de Souza, que foram criadas, a partir de 1532, as condições para as instalações e o funcionamento mais adequado dos primeiros engenhos do litoral sul do país.
É neste cenário de implantação dos primeiros engenhos de beneficiamento de açúcar que se insere o estudo das ruínas de um dos raros conjuntos histórico-arquitetônicos remanescentes do início da ocupação europeia em solo brasileiro: trata-se das Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos, um dos três primeiros engenhos de açúcar do país, localizado entre as cidades de Santos e São Vicente. Sua data de construção remonta, provavelmente, aos anos de 1534.
A área onde estão situadas as Ruínas expressa o testemunho mais antigo sobre a história do Brasil quinhentista, fator de incentivo a diversos projetos acadêmicos e educacionais nas mais diferenciadas áreas do conhecimento.
Os projetos desenvolvidos nas Ruínas buscam viabilizar o conhecimento a partir da interdisciplinaridade, em vista da especificidade histórico-ambiental em que as Ruínas estão inseridas: em confluência aos explícitos aspectos históricos de sua estrutura, há ainda diversos outros potenciais educativos que podem ser explorados. A mata adjacente às ruínas, mesmo quando observada à distância, lembra a importância das florestas tropicais e da Mata Atlântica, com todos os avanços científicos e desafios sócio-econômicos relacionados à crise da bioversidade.
A arquitetura singular desta antiga “fábrica” de açúcar e derivados pode, por exemplo, transformar-se em rico instrumento para professores de arte, línguas e matemática.
O tema “cana-de-açúcar” e suas nítidas relações com o antigo engenho invocam os mais diversos conteúdos e conceitos geográficos, biológicos, físicos e químicos.
Nosso maior objetivo é, portanto, realizar projetos pedagógicos que auxiliem a compreensão não só da história do Engenho dos Erasmos, mas também de como este testemunhou profundas transformações no modo de ver e viver da sociedade brasileira ao longo dos últimos quatro séculos.
Em anotações pessoais sobre o seu livro Fogo Morto, o romancista José Lins do Rêgo chamou a atenção para os ecos que o vazio e o silêncio do declínio do ciclo açucareiro produziram:
“(…) Não há mais barulho nas moendas do engenho! Não há mais do que um pão-de-açúcar… A moenda quebrou, a civilização mudou virou mineral fluido diluído no doce azedo das lembranças (…) Entre as chibatas e as garapas, as rapaduras e as ditaduras do solo restou apenas o sonho de um mundo adocicado (…) próprio para lembranças, ecos e silêncios” [1]
Projetos de revitalização da memória e preservação do bem cultural como os desenvolvidos nas Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos procuram dar voz e significado a estes silenciamentos. Séculos após a decadência econômica do açúcar ter calado os rangidos das moendas da Ilha de São Vicente, o silêncio nas Ruínas Engenho deixará de existir. Serão vozes novas, as primeiras a quebrarem este silêncio.
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1 Apud. CÂNDIDO, Antônio. Um Romancista da Decadência. Anotações sobre José Lins do Rêgo. Brigada Ligeira. São Paulo, Martins, s.d., p. 123.